Nick Nicotine : Entrevista – bodyspace.net (via Bodyspace)

Um vício orquestral

É músico, toma conta de um estúdio e organiza festivais. Toca em bandas de garage rock, de mariachis alternativos e de hip-hop satírico. Versatilidade poderia bem ser o nome do meio de Carlos Ramos, a quem apelidaram, em 1998, de Nick Nicotine, curiosamente por não ser fumador. Mais tarde, passou a fazer jus à alcunha até há bem pouco tempo, quando decidiu deixar o tabaco. Desde criança que gosta de música mas foi na escola secundária que iniciou a saga de bandas que se estende até aos dias de hoje – integrou mais de vinte desde 1994. Entre The Act Ups, Los Santeros, Bro-X, Fast Eddie & the Riverside Monkeys e outros projectos, surge a vontade de fazer algo a solo e, naturalmente, a Nicotine’s Orchestra. La Trahison Des Sons Ghosts and Spirits, Open Water ou, mais recentemente, Gyspsycalia são alguns dos trabalhos desta orquestra invulgar, lançados pela editora do próprio músico do Barreiro, Hey Pachuco!. Da Tropicália aprecia a mistura e a agitação e dos nómadas anseia a liberdade de movimentos. Diz ser muito agarrado às origens mas percebe-se porquê. Afinal, anda sempre com um sorriso nos lábios.

És, ou foste, músico em vários projectos, organizas festivais e ainda tomas conta de um estúdio. Como é sustentar tudo isto a nível pessoal?

Não sei o que é ser outra pessoa portanto é-me natural fazer essas coisas e mais algumas. Tento organizar as semanas com antecedência e, por vezes, tenho que me desdobrar em “personagens” durante um único dia, pois é esperado que ajas de maneira diferente em contextos diferentes, como é óbvio. O problema de trabalhar os sete dias de seguida, sem ter folgas, é que me canso, às vezes. Há fins-de-semana caóticos, que misturam concertos até ás tantas com marcações no estúdio de manhã e gravações à tarde. E depois vem a semana, normal, de trabalho. É claro que um gajo faz coisas que gosta e isso ajuda a andar de sorriso nos lábios. E é isso. Ando de sorriso nos lábios.

Tiveste vários grupos antes de formares Nick Nicotine. Como aparece a música na tua vida e, mais tarde, Nicotine’s Orchestra em específico?

Desde puto que gosto de música. Era um miúdo agitado, que fazia algumas avarias e a única forma de me manterem quieto passava por me deixarem ouvir música, brincar com os discos dos pais. Depois foi o normal: escola de música, aprender piano, desinteresse natural pela escola de música na adolescência, descobrir a guitarra, acabar o secundário e começar a tocar em bandas. Curiosamente na primeira banda que tive (os seminais Putos Rebeldes, que depois passaram a chamar-se Geração Atrofiada e, finalmente Ervas Daninhas) tocava bateria, porque ninguém sabia tocar bateria. Na altura ouvia muito Punk, Hardcore e comecei a ouvir cenas mais chegadas ao Rock and Roll. E passados uns anos formava os Act-Ups, que continuam a ser a minha banda. Pelo caminho comecei a fazer beats no computador, cenas que mais tarde foram utilizadas pelos Bro-X. E fui acumulando bandas. E pronto, chegou a um momento em que me apeteceu fazer um projecto a solo e aí surgiu a Nicotine’s Orchestra. Entre 1994 e 2012 devo ter tido umas 20 bandas, acho.

És bastante ecléctico e já passeaste por estilos musicais bastante variados. Acreditas no velho cliché “gosto de tudo um pouco” e, no caso, “faço de tudo um pouco”?

Não gosto de tudo um pouco. Nunca liguei à matemática nem à arquitectura ou aos carros, por exemplo. Mas gosto de música e, aí, não tenho grandes barreiras. Não sei se isto é um cliché mas não consigo não gostar de um estilo específico de música, isso é demasiado vasto e, para começar, tenho grandes dificuldades em catalogar as coisas. Depois há coisas que não mexem comigo e há outras que mexem muito. Às que não mexem comigo não ligo. É só isto, não me chateiam, não nada. Apenas não me dizem nada. Depois há as que mexem comigo e essas metem-me mesmo a dançar ou a pensar ou simplesmente a achar “fogo, esta porcaria é mesmo boa”.

Quanto ao “fazer de tudo um pouco” é muito simples: faço o que me apetecer fazer. Também não filtro, aqui. O único filtro é o da qualidade, gosto de apresentar coisas com pés e cabeça. Mesmo que aparentem não os ter, se para mim fizer sentido e estiver bem feito, faço-o. E faço-o porque posso. Porque sei. Porque tenho um talento que nunca se materializou no saber tocar muito bem um instrumento, por exemplo, mas se vai materializando em canções. Neste momento, estou a trabalhar num álbum de soul porque sou fanático da Motown. Em português, porque não sou fanático de nenhuma língua em particular.

Foste um dos responsáveis por trazer ao Barreiro nomes como Ty Segall, The Strange Boys ou King Khan and The Shrines. O que acrescenta a programação do Barreiro Rocks ao panorama de festivais portugueses?

Acho que a tua pergunta responde-se a ela própria. O Barreiro Rocks sempre foi o evento que, num fim-de-semana, reúne o que há de melhor no campo do Rock and Roll puro, apresentando o resultado em Portugal. Para além dos cartazes é um daqueles eventos que foi ganhando um espírito muito próprio e isso deve-se àqueles que fizeram dessa brincadeira de amigos um festival de referência na Europa: o nosso público, que é o melhor público do mundo. Barreiro Rocks é festa, sempre.

A cultura é, por diversas questões, cada vez mais relegada para segundo plano pelo poder em Portugal. Como vês, no geral, o estado da música no país?

Acho que uma coisa não tem nada a ver com outra – ainda não sabia o que era o Estado e já fazia música. Mas vamos por partes. Quanto à questão política, neste momento difícil a direita já nem é demagógica, como sempre foi nestes assuntos. Bastava olhar para o Rui Rio (que nome, caramba) há uns anos: “nem mais um tostão para a cultura enquanto houver bairros degradados no Porto”. Claro, quem é que quer saber de cultura quando há fome e pessoas na rua? É óbvio que isto não faz qualquer sentido porque não é, obviamente, o corte na cultura que irá servir para salvar seja o que for, enquanto se gasta mal noutras áreas onde o investimento é epicamente maior. Pelo contrário, a cultura, para além de gerar dinheiro, dá aos cidadãos um sentido de identificação para com o local onde vivem e esse sentimento é fulcral para que as coisas andem para a frente: o amor pela tua cidade, pelo teu país, teres orgulho na sociedade em que vives. O que os acéfalos que nos governam há décadas têm feito é precisamente o inverso. Trata-se de nos deixar sem esperança num país. Mas repara que há uns tempos a direita ainda era demagógica, como o Rio. Agora assume, simplesmente, que isso da cultura não interessa, ficamos com uma secretaria de Estado, por onde vão passando uns idiotas. E o panorama à esquerda, do que se tem visto até aqui, não é radicalmente diferente. Neste momento está tudo mal, tudo às avessas, é certo mas – e este é um mas enorme – acham que é isso que vai matar a criação artística? Não conheço um único artista que consiga não o ser. Penso nisto constantemente. Das maiores forças do mundo, desde o início, tem sido a da criação artística. É imparável. O Estado, o poder, não tem nada a ver com isso. Essa força sente-se desde cedo, a força da necessidade de mostrar algo aos outros. E aí, podem vir centenas de energúmenos – e aparentemente há por aí um saco cheio deles, não param de aparecer – relegar a cultura para o último lugar. Os artistas hão-de criar, sempre. Quanto ao estado da música: está óptima. Temos bandas e artistas excelentes, o pessoal agora grava em casa e disponibiliza pela internet, ou seja não me recordo de haver tanta música disponível, nem com uma qualidade e diversidade tão grande. Com uma massa criativa tão boa e activa, mesmo com as condições que se conhecem, a pergunta que fica é mesmo: e se fossemos governados por pessoas normais, inteligentes, por seres humanos? Imaginam?

Gypsycalia é já o teu sexto trabalho com Nicotine’s Orchestra. O que tem vindo a mudar desde o primeiro? Há uma busca incessante por novas sonoridades?

Desde o primeiro mudou muita coisa. Para já actuava e gravava em formato one-man-band tradicional, em que tocava tudo simultaneamente. Gravei três discos assim. Depois, no Ghosts and Spirits comecei a utilizar mais instrumentos, mais vozes e achei que tinha que ter uma banda para tocar ao vivo e fiz a banda. Depois gravei o Open Water, nesse formato, em que eu gravava todos os instrumentos e vozes. Para o Gipsycalia optei por gravar tudo como nos outros, passar à minha banda e levá-los para estúdio onde gravámos tudo juntos, ao vivo. Não posso dizer que haja uma busca consciente por nada, as coisas acontecem porque são reflexo do que oiço na altura, de onde a minha cabeça anda…

Há alguma explicação para o título do álbum? Revês-te de alguma forma num espírito nómada?

Gostava de ser mais nómada, se calhar é por isso. Vejo no povo cigano essa liberdade de movimentos, liberdade que eu não possuo por ser um gajo com uma âncora muito pesada. Agarro-me muito às situações e às minhas origens. E gosto da mistura e da agitação que foi a Tropicália, daí o nome do disco.

O imaginário é de sol e praia nos trópicos. Onde te inspiras para compor?

Componho quase todos os dias e, quando é assim, a criação tem tanto de composição como de método de trabalho. Como te disse, não procuro algo específico, simplesmente vou fazendo as coisas acontecerem. Estou pelo estúdio pego na guitarra ou sento-me ao piano e vou apontando as ideias. Há algumas que começam logo a falar comigo, a cantar. Há outras que precisam de algum tempo na gaveta até crescerem. Entretanto se puder ir até à praia, óptimo, adoro.

Nas actuações ao vivo, é a isto que se propõem? Festa até de manhã?

Espero sempre que quem vá a um concerto nosso saia de lá com vontade de comemorar, portanto, festa até de manhã porque não? Ou isso ou que vão para casa dançar o mambo na horizontal. Já fico contente se houver festa durante o concerto. Gostamos muito quando o público está nesse party mood, a dançar, a abanar a anca. Dá aquela sensação de “trabalho bem feito”. Nós damos o litro – dançamos sempre.

Sendo multi-instrumentista, bebendo de tantas influências, quer musicais quer étnicas, e envolvido numa variedade de projectos que tanto roçam o hip-hop, como o garage ou o country, consideras-te um músico do mundo?

Sou músico dum mundo, sim.

Alexandra João Martins

Fonte: Bodyspace

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